quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O PIANISTA DO NÚMERO 22


           Era fim de verão no Alentejo.

         O outono se aproximava devagar, trazendo o vento fresco para abrandar o sol das manhãs e gelar as madrugadas na branca Beja.
         Eu caminhava só. Sempre. 
          Todas as madrugadas que passei por lá, pisei com cuidado sobre as grandes pedras do caminho, cabeça semibaixa, sentindo no rosto o vento gélido e no coração branda nostalgia.
          Era nessas horas que eu ouvia. De uma porta azul cobalto, a contrastar com a brancura derredor, mãos dedilhavam com sutileza e segurança um piano. O piano do número 22. Sei apenas isso do meu companheiro das madrugadas: que morava no número 22. Não sei o nome da rua, não sei seu nome, sua cor, seu sexo. Não senti seu perfume nem conheci sua voz, mas fui plateia discreta de suas apresentações. Porque sei que não eram treinos. Eram dedos treinados. Tocando por nostalgia ou deleite. Pelo prazer noturno de fazer vibrar a atmosfera.

         Nunca reclamei de estar só, mas por duas vezes quis ter alguém com quem repartir aqueles momentos... Muito bons pra sentir sozinha. Muito plenos para não serem multiplicados. Mas ficou somente entre nós duas: eu e a noite.
         Sim, porque nem o pianista sabia de mim, nem a porta poderia contar-lhe. Talvez o silêncio o tenha feito. Talvez a boemia lhe tenha dado notícias da ouvinte. Talvez. Nunca saberei.
         Naquelas noites de setembro, caminhava com lentidão, respiração suspensa, ouvidos atentos, coração estendido para receber os sons.
             
         Havia também um coral de grilos e holofotes de pirilampos a compor aquele cenário, onde eu era singela coadjuvante.
         No entanto nunca fiquei até o final. Nunca lhe disse “Bravo!”. Sequer aplaudi.
            
         Por isso que hoje, quando a inquietude me tirou da cama e Mozart me ofereceu seu piano concerto número vinte e um, eu, em outro andante, lembrei-me do Alentejo, da porta azul cobalto, da branca Beja onde fui presenteada com esta arte. E quando o maestro digital terminou sua execução, levantei-me e escrevi uma salva de palmas e gritos de “Bravo” ao Pianista. Do número 22.
             

         Bravíssimo!    

In CONTOS E OUTROS TANTOS

terça-feira, 26 de novembro de 2013

PINTURA

GRAFITE

         Era cinza.        
         Não que houvesse dor ou fadiga, mas ao seu olhar tudo era cinza. Sol, mato, gente, céu, era tudo um bolo uniforme de tons e semitons do cinzento vazio que a compunha. Mosaico humano de quereres, seus passos eram buscas em degradé, pela cor.
          Íris às vezes era forte e desbastava empecilhos como ninguém. Às vezes era frágil como colibri pousado no chão. No cinzento chão da procura. E quanto mais procurava menos cores vislumbrava ao seu redor.       
         Pintava sua vida a grafite.
          Dia após dia, lia seus afazeres com a lente difusa da espera, esfumando aqui, contornando ali, rasgando fora o que não servia. Engendrar sentidos era sua engenharia. E era de sonhos sua construção.


SÉPIA

         Como reencontro, se conheceram quando não se buscavam. No vai e vem das ruas trocaram as primeiras palavras e foi diante do mar o primeiro toque.
         Suas mãos entrelaçaram desejos em sépia, muitos bem guardados. Mas como só a mudança é permanente, seus braços se encarregaram de desarrumar as certezas...


E FOI ASSIM

E FOI ASSIM

         Ela deixou-se guardar entre seus braços, molemente, enquanto ele acariciava seus cabelos. Seus olhos semicerrados inda viram sua boca macia caminhar lentamente em direção à sua.
         Não, não foram lábios, foi o sol que a tocou! Morna de carinho sentiu quando a alma se preparou para mudar de corpo. Viu, com os olhos fechados, a paisagem que a esperava, e bebeu de seu frescor.
         E eram versos que escreviam um no outro, sem pressa, em prece, enquanto o sol dormia no horizonte e a lua dava boas vindas aos que a viam nascer.
         Era um andante, que eles compunham com notas de carinho.
         Era um balé. E dançavam, boca a boca, com a leveza de veteranos, embora virgens um do outro. 
         
         Ah, um beijo não é um beijo se não for um chamado mudo pra carícia, se não for um ceder-se ao afeto. Se não afrouxar a razão, e o coração não desejar, aos pulos, trocar de peito. Se não se soltarem, aos suspiros, os amantes. Se ao final, os olhos não estiverem brilhando. Um beijo é isto sim, uma oração a dois, sem antes ou depois, terços ou novenas. É reza forte: com cheiros e sabores, com ritos e códigos que nem os amantes decifram.
         Naquela hora, todas essas coisas estiveram ali, gravadas em suas bocas, na suavidade dos toques, no sem-fim do tempo, mas cada um guardou consigo a história que desejou. A pintura que fez na própria memória, como sempre é.


AQUARELA
“No more lonely nights, no more lonely nights...”  Paul MacCartney

         Viram-se muitas outras vezes. Conversaram muito, sobre tantas questões... Acho até que se tornaram amigos. Eu acho. Mas aquele beijo foi único, e o único! Não precisavam mais talvez. Aliás, não era questão de necessidade (nunca é!) e a questão, na verdade, não vem ao caso. O fato é que naquela noite, ela deixou que sua alma registrasse, numa aquarela de palavras, a magia daqueles segundos:

              Seus lábios, como veludo,
              tocaram meu silêncio cheio de eus te amos
              E foi só.

         Mas não fora, porque agora seu olhar já não era o mesmo, eram muitas as cores que compunham este mulher, para sempre arco-Íris.


DO LIVRO

CONTOS E OUTROS TANTOS 
        

domingo, 24 de novembro de 2013

LEITURA

AGORA

         Ela o sentia no cheiro dos livros novos. O tocava através das folhas, das poesias. Nunca nos romance, muito longos ao contrário de sua convivência com ele... No máximo o sentia nos contos, com sabor de clássicos. Nas crônicas do dia-a-dia, outros tantos de prosa, talvez. Via seus olhos no brilho das luzes sobre as capas e seu coração palpitava só de pensar na emoção dele com a leitura.
        
         Ele a ensinou a ler. A ler com a alma. Mas nunca saberia...
        
         Lendo tão assim, com a alma, ela tocava as páginas como quem entrelaça os dedos do ser amado. Cochichava consigo mesma sobre as entrelinhas e corava com as possibilidades que via diante de si. Seu mundo agora era outro. Como homeopatia, ingeria todo dia um texto. Num dia ria, noutro chorava. Mas nunca mais seria a mesma. Nunca mais! Agora via intensidade em tudo. Via mais beleza no mundo, nas coisas, nas pessoas. Se o vento roçava as folhas do coqueiro, ela construía com o olhar uma poesia, se chovia forte à noite, intuía um conto ou dois. E depois os partilhava com a mesma suave emoção com que os concebia.
         Conceber. Verbo visceral.
         Bem oportuno também, porque ela se sentia mesmo grávida. Grávida de vida, de palavras, de histórias. Sentia mesmo o corpo crescer aos empurrões da alma que irradiava mais forte.


ELE

         Semeador de palavras ele seguia sempre, abrindo olhos, despertando consciências, enternecendo corações. Seu verbo ia auxiliando no crescimento de tantos homens e mulheres sequiosos de saber. Seu caminho não tinha porto.
         Seu nome – Luan. E era mesmo parecido com a lua! Tinha fases, ausências, mas sempre refletindo luz e incentivando sonhos.


ELES
“O luar é a luz do sol que está sonhando!” Mario Quintana

         Foi assim.
         Ela estava distraída quando o viu chegar. Não sei se era dia ou noite, porque a pele branca dele fazia tudo parecer tão claro que ela não soube contar o tempo senão por Mnemosine. E aquele foi mesmo um tempo da memória afetiva. Só dela.
         Não teve relógio que ousasse contar as horas. Horas? Ora, para quê?!
            Ele a olhou como a tantos outros olhou. Como o oleiro diante da argila ou o lapidário diante da gema. Sorriu para iniciar seu trabalho e ela sentiu como se o luar entrasse pela janela. Riu sozinha quando escutou seu nome. Ninguém entendeu o porquê, mas é que naquela hora, só ela viu o sol que sonhava através do luar Luan. 


ELA

         Tímida, de fibra e ideais nobres, Marta era jovem madura desde menina, quando já ensinava a tantos as primeiras de letras. E o fazia com maestria. Nunca da mesma forma nem com menor prazer.
         Apesar disso, sentia que faltava algo a mais que mantivesse para sempre o brilho nos olhos daqueles a quem ensinava. Comparava seu trabalho ao céu sem a luz da lua: cheio de encanto e poesia, mas incompleto.
         Isso a incomodava...


O BAÚ             

         Marta nunca tinha pensado na leitura como canal para o que fazia. Sempre que alfabetizava ofertava livros para treino e como prêmio, mas nenhuma vez como ponto de partida. Até aquele dia em que encontrara Luan.

         Feitas as apresentações, ele abriu, no meio da sala, um baú. Tosco, rude e cheio de livros. Ela estancou. Seus olhos se limitaram a observar o caminho de cada um até ele. A forma cerimoniosa como folheavam.
         Minutos depois Luan pediu que sentassem, fechou o baú e abriu a boca.   Impregnou a sala de histórias. Contou e encantou por muito tempo. Todos viajaram ao som de sua voz, letra a letra, com intensidade. Quando então reabriu o baú, a história foi bem outra! E Marta percebeu onde estava a lua que precisava para completar seu trabalho. O marco era os livros, mas pra dar o tom era preciso o som das histórias contadas, remexidas com gestos e olhares, levadas ao forno das emoções em fogo brando, mas perene, e servido com paixão, paixão de ler!


POR ISSO         

         Por isso agora amava tanto. Lia e relia com tanto prazer. Sorria com corpo e alma, e sua boca já não se contentava em repassar saberes. Tinha acabado de romper a crisálida e queria voar alto, ou apenas voar simplesmente, pousando e fecundando cada flor, participando da multiplicação dos jardins. Jardins de palavras. Era com eles que sonhava quando a vimos na livraria, grávida de histórias.
         Nesse momento, sobre improvisado palco, rodeado de jovens e crianças de todas as idades, ela põe Mozart – concerto para flauta nº 2 – dá pulos em stacato, com olhos de quem belisca levemente, para chamar atenção.

         Já é anjo, e sopra histórias que faz viver por sua boca, olhares e gestos. O espaço se completa de luzes, sons, palpitações e a vontade de ouvir um pouco mais. Contando, reúne numa ciranda, autores e ouvintes, textos e desejo deles, e nesta roda – viva de histórias – a magia está completa.

         Marta contempla o espaço e suspira fundo, numa pausa que antecipa o fim.       Como é feliz assim, como é feliz.

         Ah, sim!
                       

VIDA E POESIA
“Não faço versos a ti. Faço versos de ti”. Mário Quintana

         Agora ela descansa corpo e alma, debruçada sobre a memória.
         Semente de seus ideais, seus pensamentos flutuam pelo quarto, seu mar, que reflete em águas calmas, a luz da lua.
         Relembra Luan.
         Quanto amor podia sentir agora prescindindo do corpo, da presença, do toque. E, no entanto, como tocava sua presença-ausente, seu corpo encantado, nas páginas da memória.
           
         A vida é plena de poesia e bem querer se o quisermos, sabe?! Se não prendermos apertados os momentos e pessoas, como eles se gravam em nós.

         Era assim que Luan estava em Marta: gravado para sempre, como água forte.
         Ela não vivia um poema de amor. Ela era amor. Era um cântaro cheio dele e o distribuía junto com as letras que ensinava e as histórias que contava.      Não escrevia contos. Os vivia. E era muito feliz assim...

LEITURA, abre o livro CONTOS E OUTROS TANTOS (que ainda não nasceu em papel)