terça-feira, 31 de dezembro de 2013

2014

Minha avó dizia que sete era conta de mentiroso, mas entro o ano com sete livro aprovados!
Para dois já assinei contrato. E para um outro eu devia um conto, que "acabei de acabar". EM FAMÍLIA está pronto, e daqui a pouco vou ver a minha. Deixarei apenas os fogos cessarem. Não quero deixar meus bichinhos sozinhos nesse momento barulhento.

Estou muito feliz!

Que venha 2014.
Que venham mais ideias, mais publicações, mais amigos, mais capacidade de resolver problemas e não criá-los, mais tempo para ser feliz...

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

DIZER NÃO

“Dizer não e organizar
é um direito que ninguém
pode nos tirar.” José Saramago
  
Quando eu era menina toda noite ao deitar me imaginava voando sobre as mangueiras que avistava do meu quintal. Não fazia ideia do preço fabuloso que metade do mundo adulto pagaria por este meu sem-compromisso com o tempo e a realidade.
Como voei, com a velocidade e a discrição dos pardais...  
 Lá, sozinha, no chão do meu céu, éramos só eu e o ar, mais nada. Ninguém pra dizer “Desce daí menina!” ou  “Você é menina, não pode”, nem tampouco pra correr atrás com aquele remedinho vermelho (ardido que era), quase esperando meu tombo só pra dizer “Não disse pra não voar?!”
É, éramos só eu e o ar. Sem tempo pra trás ou pra frente. Só presente. E que presente!
Ali eu não era a prometida veterinária, a possível professora, a desejada médica ou qualquer coisa assim. Era somente uma criança, do alto dos meus cinco, seis anos, no céu de mim mesma, sobrevoando o espaço azul o tempo que ousasse imaginar, sem querer nada além de abrir os braços e levitar.
E voava, e contornava as folhas, e cruzava as nuvens, e fechava os olhos pra sentir o vento, e... E ... E...

Mas o tempo, senhor das vidas, nos cobra pouso em terra firme. Talvez pra pôr a prova o equilíbrio sobre o chão, talvez pra pôr a prova a coragem de dizer não. Porque, como se sabe, todo futuro é feito de alguns sins e muitos nãos. E viver em terra firme, mais que viver no ar (ou no mar) é viver fazendo escolhas. E não há nada mais movediço que o solo das decisões. Afinal, “quem prefere pretere”. Sim porque, se isso, então, adeus aquilo. Se for assim, então, não será assado.
Mas, se não arrisco não petisco!

Escolher é preciso.

Então pousei fazendo minhas escolhas, ou sendo escolhida por elas, dia após dia. O único problema é que ao aterrissar assim da mais tenra idade direto na maturidade, fiquei cheirando a nostalgia, com perfume de alegria, de infância perdida, cheia de carimbos e carinhos, pelo corpo inteiro. E talvez por isso, às vezes, a realidade me espante tanto... 
Voar aos seis anos era muito mais fácil que caminhar na maioridade. A não ser quando caminho por meu quarto, onde ainda voo enquanto digito meus textos, ou pelas ruas, enquanto caminho pro trabalho, ou pelo olhar de minha filha quando lhe digo eu te amo, ou pelo olhar das crianças enquanto lhes conto histórias. Nestas horas voo sem dificuldades.
Mas será que nessas horas estou na realidade?!  Acho que não.
Acho que nesses momentos me movimento dentro de sonhos: sonhos de escritora, sonhos de andarilha, sonhos de mãe (os mais doces), sonhos de voltar a voar nas asas das histórias. Sonhos.
Por isso nestes últimos minutos resolvi-me por pensar nas realidades, nas decisões que a vida me cobra. E resolvi que não devo nada a ela. Nada. É certo que disse sins demais e nãos de menos, é certo que voei demais e aterrissei de menos, mas como piloto aprendiz, gravei todas as instruções. Mais que isso, como todo avião registrei tudo na caixa preta, e ainda que me destrua por inteiro, minha aprendizagem vai estar lá, pronta pra ser ouvida por mim mesma que, erguida do chão, me refarei e voltarei a voar, porque, por mais que a vida me peça escolhas, acabo me repetindo, e saltando pro ar. Porque eu gosto mesmo é de voar. De todas as minhas escolhas, esta é a preferida. A que mais enriquece minha vida.
Voo nas histórias que conto e que escrevo. Voo nas brincadeiras que faço com minha filha, voo nas lutas que tenho que travar todos os dias pra me manter de pé. 
Voo porque é o que faço de melhor; é meu jeito de não estar só. Porque meu céu, é feito de palavras e ainda que fique muda, poderei escrevê-las; ainda que fique cega poderei dize-las; ainda que meu corpo não responda, poderei pensá-las; e quando até para isto a energia se acabar, outra criança, em outra parte do mundo, vai fazer tudo recomeçar. E onde quer que eu esteja, esta será minha emoção mais forte. Isto valerá todos os excessos de sim e todas as faltas de não, isto superará minha morte.

Não pretendo traçar nenhuma apologia à permissividade ou à casmurrice, afinal “assim como maçãs de ouro servidas em bandejas de prata é a palavra dita a seu tempo”, e ainda não li verdade maior que esta. O que desejo é destrancar as dores que trago no peito e me permitir dizer não pro que me incomoda e organizar meu mundo interno.

Depois, bem depois, fecharei meus olhos e voltarei a voar, porque eu não sou de ferro.

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Escrito em 2004, há quase dez anos atrás, e continuo voando!

domingo, 29 de dezembro de 2013

ENTRE MÃE E FILHO

 
       Desde cedo brincou com papel. Até suas bonecas eram feitas dele. Cola e tesoura no lugar de retalhos e agulhas, ao modelar os trajes com que as vestia. Tanto o fez, que foi através dele que reconheceu e assegurou seu papel no mundo. Da Certidão aos sentimentos, mantinha quase toda sua vida registrada. Das texturas mais densas às mais sedosas lembranças.
         Brinca agora.
       Seu pulso faz girar a caneta num bailado de formas bem desenhadas que contam histórias. (Já contara outras tantas: de infâncias, desejos, pequena notas, extensas laudas, poemas, pedidos). Com alma de fiandeira desfia o grafite do caule e tece, ora com vigor, ora com vagar, seus pensares. Sua tarefa ganha forma até o ponto final, mas a revisão cede lugar à reticente brisa que passa roubando-a de si mesma.
         Lembra-se do quanto apreciava recordar seus passos, escrever suas preces, abrandar suas pressas, nomear suas presas, decorar-se com asas.
        Nesse devir recua no tempo e brinca entre árvores, ciranda descalça, namora luares, revê caminhos, rascunha lugares... Permite-se balançar na rede da memória, sem demora, sentindo cada minuto ventar em seu rosto, com gosto.
         Sob tênue véu se vê menina, rodopia moça, mas, encharcada de ternura, se reconhece mulher. Com o passar das horas seu corpo já vertia o conteúdo láteo com que alimentaria seu sonho.
         Retorna à realidade.
      Peito aberto aproxima-se do berço e acolhe entre os braços seu melhor texto. Ressona um acalanto pra aninhá-lo e escreve com o olhar códigos de amor sobre o rosto de seu filho.
      Não há papel que registre. Palavra que represente. Fotografia que capture. Tela que retrate com fidelidade o que se passa.
         É quadro único. Obra ímpar.                                       
          O texto sobre a mesa aguarda revisão, mas este texto, entre mãe e filho, nasce pronto.
         Nasce.
         E pronto.

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In Contos e Outros Tantos, este texto nasceu muito antes do meu sobrinho Marco Túlio, mas foi somente quando ele veio que tudo fez sentido. No original eu insistia em falar de menina, porque sou mãe de menina, afinal. Mas o texto nasceu para este novo Ferreira, antes dele mesmo. E apenas ganhou sentido para mim quando, um dia, o vi, nos braços de minha irmã caçula, que... Desde cedo brincou com papel.



domingo, 22 de dezembro de 2013

Manjedoura vazia

         
         Um homem caminhava só pelas ruas da cidade. Contemplava as pequeninas flores que teimavam nascer entre as pedras do asfalto, e se perguntava por que por mais tivesse amado, estava agora tão só?      

          Entardecia, era Natal.

          Ao seu lado pessoas passavam apressadas para as últimas compras. Às vezes um ou outro parava para lançar-lhe um olhar meigo, cheio da compaixão que guardamos para sentir no natal. Tinham pena de sua roupa tão simples e sua solidão tão clara... Caminhavam em sua maioria em pequenos grupos, mas no fundo também elas estavam sós (daquela solidão das idéias sem par, dos amores unilaterais, dos desejos de mão estendida, de amigos), mas se negariam admitir! Vez por outra uma criança o apontava e dizia: “Mãe, olha o papai Noel!” e eram puxadas entre um lacônico “Anda, menino, anda!” ou simplesmente “Tá, meu filho, tá”.  Não tinham tempo para os arroubos infantis.

          E o homem caminhava.

          Por que mesmo com tanta dedicação e carinho seus queridos o ignoravam num dia tão especial quanto aquele? Será que havia sido esquecido?
          Nas ruas, decorações de todos os matizes com milhares de luzes que pisca-piscavam, disputavam a atenção dos passantes.
          No entanto, alguém, como o fez Assis1, lembrou-se de montar um presépio.
          No meio da praça, Maria, José, os reis magos, pastores e cada animalzinho estavam ali representados. Só a manjedoura mantinha-se vazia a dizer da grandeza do recém nascido.
          Um menino do alto de seus três anos, puxando a saia da mãe interrogava-lhe:
-          Mamãe, cadê o Menino?

          Neste instante o homem agachou, e estando da altura daquela criança, sentiu-lhe grandeza. Tocou-lhe carinhosamente nos ombros e, olhos nos olhos, como fosse também menino, pareceram efetuar ali mesmo um pacto de amor pelo mundo do porvir. 
          Já não estava só. Sabia que agora não seria esquecido.
          O pequenino então observando o homem que se levantara, virou-se para a mãe, e respondeu à sua própria pergunta:
-          Esse Menino tá muito ocupado, né mãe?! Tá muito ocupado!

          Não se sabe o porquê, mas naquela noite uma forte luz verde-azulada brilhou dentro da manjedoura vazia, como se o Mestre nos quisesse lembrar da mensagem de amor que veio trazer, nos quisesse dizer de Sua grande dedicação por cada um de nós...
             
          Ah?!  E o homem que andava só? Ora, esse Menino tá muito ocupado, muito ocupado!

Hellenice Ferreira
Natal de 1997 

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1 – Francisco de Assis foi quem montou o primeiro presépio, no ano de 1223.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Cena 11 - Então ele respondeu:

Meu pai era o tipo do cara de que me lembro, quase
sempre, com um livro, ou jornal, entre as mãos. Geralmente
eram livros à noite e jornais nas manhãs de
domingo.
Quando ele morreu, eu tinha dez anos, quase
onze. E se toda morte traz lá sua desculpa, a dele
foi das mais esfarrapadas: acidente de trânsito, em
frente à nossa casa e na calçada... Difícil de ler, não?!
Imagina de viver aos dez anos!
Mas, esfarrapada ou não, difícil ou não, para
tudo nessa vida a gente tem um parceiro que ajuda
bastante — o tempo.
E o tempo passou. Passou muito até que aquela
imagem de homem-leitor fizesse, na minha cabeça, o
sentido que faz hoje.
Naquela época, estávamos na década de setenta
(aprendi a ler, oficialmente, entre 75/ 76). Década da
lei 5.692 — “barra 72”. Lembro-me de que líamos um
livro por bimestre, a partir da quarta série. Mas, vivas
mesmo na lembrança, ficaram as malfadadas “provas
do livro”. Como eu odiava prova do livro! Irck!
Vinham encartes dentro das obras, e nós éramos
quase obrigados a decorar as respostas, objetivas,
que deveríamos dar neste ou naquele ponto. Sem tirar
nem por anotações.
Ler para mim era uma tortura, um saco.
A primeira prova do livro que fiz foi a partir
da leitura de O gigante de botas, de Ofélia e Narbal
Fontes, editora Ática, coleção Vaga-lume (quem
lembra? As obras, sempre oportunas, sujeitas ao uso
despreparado que só o tempo e a vontade de muitos
profissionais corrigiriam).
1980.
Acabei a leitura do livro, obrigada, num fim de
domingo (a prova seria na manhã seguinte). Meu pai
até que estimulava, mas, que nada, aquilo para mim
era tortura, na boa, como diriam os pré-adolescentes
de hoje.
Devo ter tirado nota para passar, porque não fiquei
com nenhuma má lembrança da prova.
Muitos anos depois reli o livro. Gostei muito.
Dele e do Cem noites tapuias lido também lá em 80.
E aí fiquei pensando: “Por que não gostei deles lá
atrás? Será que era só porque eu era criança? Mas
eles eram para minha faixa etária?! Por que tão distantes
então?”
Não. Absolutamente. Não foi a minha idade que
me separou da obra, foi o oferecimento. O livro não
chegou até mim como objeto encantado... A história
não chegou como história. Chegaram ambos como
instrumentos de avaliação. E nada mais difícil em
qualquer idade e sob qualquer pretexto do que ser
avaliado. Pesa, aflige, assusta.
Prova do livro.
O que prova sobre meu “aproveitamento” de uma
leitura senão minha vontade de partilhá-la com todas
as pessoas de que gosto?! Minha vontade irrefreável
de contar para todo mundo?! Escrever respostas
“pré-fabricadas” sobre este ou aquele personagem,
essa ou aquela parte, sobre (e isto é o pior) o que
quis dizer o autor me tornam, talvez, uma máquina
copiadora. Talvez nem isso.
E é aí que volto à imagem de meu pai.
Absorto. Estático, exceção feita à mão, que passava
as páginas, e aos olhos, sempre ávidos. A face interna
da leitura não podia nem posso ver. Mas aquela
imagem, deliciosamente compenetrada, definiu e redefiniu
meus encontros com as leituras, muitas vezes!
O que o fazia ler sem ninguém mandar, sem ninguém
pedir, ler para não fazer prova nenhuma?! Ler
e ser feliz?! Porque isso sempre ficou claro para mim,
ele era feliz lendo. Minha mãe diz até hoje que o
mundo poderia despencar que, se meu pai estivesse
lendo, não ouviria mesmo!
A leitura o nutria.
Quando catorze anos após sua partida, comecei a
trabalhar como mediadora de leitura, e sem perceber,
fui internalizando textos para contar, transformando-
-me pouco a pouco e sem saber em contadora de
histórias. Claro que fiz umas excursões sobre Júlias
e Sabrinas, José de Alencar e Exupéry antes, mas foi
quando vi o brilho que refletia no olhar dos meus ouvintes,
que me lembrando de meu pai, fui construindo
meus conceitos sobre a prática leitora. Não adianta
empurrar nada goela abaixo, que dirá livros! Vale dar
dica, vale oferecer, sem cobrança, claro, vale contar
ao pé do ouvido (e como vale!), mas tem que seduzir,
alimentar, semear. Isso! Semear é o verbo. Semear e
deixar que o dono da terra cuide do resto, na hora
que achar melhor. Vale ajudar, mas sem cobranças.
Ninguém obriga ninguém a ler. Que nos valha Daniel
Pennac! Semear e seduzir. Sempre. Sem medo.
Muita água rolou no rio de minha vida,
precisaria de muito tempo para que, um dia, conversando
com minhas irmãs mais velhas, me lembrasse
de um diálogo que se tornou marcante:
— Ah, pai, eu acho ler muito chato! — tinha entre
oito e dez anos.
Então ele respondeu:
- Minha filha, quando você perceber a importância
da leitura em sua vida, você nunca mais vai parar de
ler, nunca mais...
Além de tudo, meu pai, leitor inveterado, era visionário...
A lição foi aprendida.

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Originalmente publicado em CENAS COMUNS, este texto também consta da obra Literatura também é coisa de criança, escrito em parceria com Vera Lucia Santos da Silva e publicado pela Editora Ao Livro Técnico.