segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

DIZER NÃO

“Dizer não e organizar
é um direito que ninguém
pode nos tirar.” José Saramago
  
Quando eu era menina toda noite ao deitar me imaginava voando sobre as mangueiras que avistava do meu quintal. Não fazia ideia do preço fabuloso que metade do mundo adulto pagaria por este meu sem-compromisso com o tempo e a realidade.
Como voei, com a velocidade e a discrição dos pardais...  
 Lá, sozinha, no chão do meu céu, éramos só eu e o ar, mais nada. Ninguém pra dizer “Desce daí menina!” ou  “Você é menina, não pode”, nem tampouco pra correr atrás com aquele remedinho vermelho (ardido que era), quase esperando meu tombo só pra dizer “Não disse pra não voar?!”
É, éramos só eu e o ar. Sem tempo pra trás ou pra frente. Só presente. E que presente!
Ali eu não era a prometida veterinária, a possível professora, a desejada médica ou qualquer coisa assim. Era somente uma criança, do alto dos meus cinco, seis anos, no céu de mim mesma, sobrevoando o espaço azul o tempo que ousasse imaginar, sem querer nada além de abrir os braços e levitar.
E voava, e contornava as folhas, e cruzava as nuvens, e fechava os olhos pra sentir o vento, e... E ... E...

Mas o tempo, senhor das vidas, nos cobra pouso em terra firme. Talvez pra pôr a prova o equilíbrio sobre o chão, talvez pra pôr a prova a coragem de dizer não. Porque, como se sabe, todo futuro é feito de alguns sins e muitos nãos. E viver em terra firme, mais que viver no ar (ou no mar) é viver fazendo escolhas. E não há nada mais movediço que o solo das decisões. Afinal, “quem prefere pretere”. Sim porque, se isso, então, adeus aquilo. Se for assim, então, não será assado.
Mas, se não arrisco não petisco!

Escolher é preciso.

Então pousei fazendo minhas escolhas, ou sendo escolhida por elas, dia após dia. O único problema é que ao aterrissar assim da mais tenra idade direto na maturidade, fiquei cheirando a nostalgia, com perfume de alegria, de infância perdida, cheia de carimbos e carinhos, pelo corpo inteiro. E talvez por isso, às vezes, a realidade me espante tanto... 
Voar aos seis anos era muito mais fácil que caminhar na maioridade. A não ser quando caminho por meu quarto, onde ainda voo enquanto digito meus textos, ou pelas ruas, enquanto caminho pro trabalho, ou pelo olhar de minha filha quando lhe digo eu te amo, ou pelo olhar das crianças enquanto lhes conto histórias. Nestas horas voo sem dificuldades.
Mas será que nessas horas estou na realidade?!  Acho que não.
Acho que nesses momentos me movimento dentro de sonhos: sonhos de escritora, sonhos de andarilha, sonhos de mãe (os mais doces), sonhos de voltar a voar nas asas das histórias. Sonhos.
Por isso nestes últimos minutos resolvi-me por pensar nas realidades, nas decisões que a vida me cobra. E resolvi que não devo nada a ela. Nada. É certo que disse sins demais e nãos de menos, é certo que voei demais e aterrissei de menos, mas como piloto aprendiz, gravei todas as instruções. Mais que isso, como todo avião registrei tudo na caixa preta, e ainda que me destrua por inteiro, minha aprendizagem vai estar lá, pronta pra ser ouvida por mim mesma que, erguida do chão, me refarei e voltarei a voar, porque, por mais que a vida me peça escolhas, acabo me repetindo, e saltando pro ar. Porque eu gosto mesmo é de voar. De todas as minhas escolhas, esta é a preferida. A que mais enriquece minha vida.
Voo nas histórias que conto e que escrevo. Voo nas brincadeiras que faço com minha filha, voo nas lutas que tenho que travar todos os dias pra me manter de pé. 
Voo porque é o que faço de melhor; é meu jeito de não estar só. Porque meu céu, é feito de palavras e ainda que fique muda, poderei escrevê-las; ainda que fique cega poderei dize-las; ainda que meu corpo não responda, poderei pensá-las; e quando até para isto a energia se acabar, outra criança, em outra parte do mundo, vai fazer tudo recomeçar. E onde quer que eu esteja, esta será minha emoção mais forte. Isto valerá todos os excessos de sim e todas as faltas de não, isto superará minha morte.

Não pretendo traçar nenhuma apologia à permissividade ou à casmurrice, afinal “assim como maçãs de ouro servidas em bandejas de prata é a palavra dita a seu tempo”, e ainda não li verdade maior que esta. O que desejo é destrancar as dores que trago no peito e me permitir dizer não pro que me incomoda e organizar meu mundo interno.

Depois, bem depois, fecharei meus olhos e voltarei a voar, porque eu não sou de ferro.

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Escrito em 2004, há quase dez anos atrás, e continuo voando!

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