“Dizer não e organizar
é um direito que ninguém
pode nos tirar.” José
Saramago
Quando eu era menina toda noite
ao deitar me imaginava voando sobre as mangueiras que avistava do meu quintal.
Não fazia ideia do preço fabuloso que metade do mundo adulto pagaria por este
meu sem-compromisso com o tempo e a realidade.
Como voei, com a velocidade e a
discrição dos pardais...
Lá, sozinha, no chão do meu céu,
éramos só eu e o ar, mais nada. Ninguém pra dizer “Desce daí menina!” ou “Você é menina, não pode”, nem tampouco pra
correr atrás com aquele remedinho vermelho (ardido que era), quase esperando
meu tombo só pra dizer “Não disse pra não voar?!”
É, éramos só eu e o ar. Sem tempo
pra trás ou pra frente. Só presente. E que presente!
Ali eu não era a prometida
veterinária, a possível professora, a desejada médica ou qualquer coisa assim.
Era somente uma criança, do alto dos meus cinco, seis anos, no céu de mim mesma,
sobrevoando o espaço azul o tempo que ousasse imaginar, sem querer nada além de
abrir os braços e levitar.
E voava, e contornava as folhas,
e cruzava as nuvens, e fechava os olhos pra sentir o vento, e... E ... E...
Mas o tempo, senhor das vidas,
nos cobra pouso em terra firme. Talvez pra pôr a prova o equilíbrio sobre o
chão, talvez pra pôr a prova a coragem de dizer não. Porque, como se sabe, todo
futuro é feito de alguns sins e muitos nãos. E viver em terra firme, mais que
viver no ar (ou no mar) é viver fazendo escolhas. E não há nada mais movediço
que o solo das decisões. Afinal, “quem prefere pretere”. Sim porque, se isso,
então, adeus aquilo. Se for assim, então, não será assado.
Mas, se não arrisco não petisco!
Escolher é preciso.
Então pousei fazendo minhas escolhas, ou sendo escolhida por elas, dia após dia. O único problema é que ao aterrissar assim da mais tenra idade direto na maturidade, fiquei cheirando a nostalgia, com perfume de alegria, de infância perdida, cheia de carimbos e carinhos, pelo corpo inteiro. E talvez por isso, às vezes, a realidade me espante tanto...
Voar aos seis anos era muito mais fácil que caminhar na maioridade. A não ser quando caminho por meu quarto, onde ainda voo enquanto digito meus textos, ou pelas ruas, enquanto caminho pro trabalho, ou pelo olhar de minha filha quando lhe digo eu te amo, ou pelo olhar das crianças enquanto lhes conto histórias. Nestas horas voo sem dificuldades.
Mas será que nessas horas estou
na realidade?! Acho que não.
Acho que nesses momentos me movimento
dentro de sonhos: sonhos de escritora, sonhos de andarilha, sonhos de mãe (os
mais doces), sonhos de voltar a voar nas asas das histórias. Sonhos.
Por isso nestes últimos minutos
resolvi-me por pensar nas realidades, nas decisões que a vida me cobra. E
resolvi que não devo nada a ela. Nada. É certo que disse sins demais e nãos de
menos, é certo que voei demais e aterrissei de menos, mas como piloto aprendiz,
gravei todas as instruções. Mais que isso, como todo avião registrei tudo na
caixa preta, e ainda que me destrua por inteiro, minha aprendizagem vai estar
lá, pronta pra ser ouvida por mim mesma que, erguida do chão, me refarei e
voltarei a voar, porque, por mais que a vida me peça escolhas, acabo me
repetindo, e saltando pro ar. Porque eu gosto mesmo é de voar. De todas as
minhas escolhas, esta é a preferida. A que mais enriquece minha vida.
Voo nas histórias que conto e que
escrevo. Voo nas brincadeiras que faço com minha filha, voo nas lutas que tenho
que travar todos os dias pra me manter de pé.
Voo porque é o que faço de
melhor; é meu jeito de não estar só. Porque meu céu, é feito de palavras e
ainda que fique muda, poderei escrevê-las; ainda que fique cega poderei
dize-las; ainda que meu corpo não responda, poderei pensá-las; e quando até
para isto a energia se acabar, outra criança, em outra parte do mundo, vai
fazer tudo recomeçar. E onde quer que eu esteja, esta será minha emoção mais
forte. Isto valerá todos os excessos de sim e todas as faltas de não, isto
superará minha morte.
Não pretendo traçar nenhuma
apologia à permissividade ou à casmurrice, afinal “assim como maçãs de ouro
servidas em bandejas de prata é a palavra dita a seu tempo”, e ainda não li
verdade maior que esta. O que desejo é destrancar as dores que trago no peito e
me permitir dizer não pro que me incomoda e organizar meu mundo interno.
Depois, bem depois, fecharei meus
olhos e voltarei a voar, porque eu não sou de ferro.
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Escrito em 2004, há quase dez anos atrás, e continuo voando!
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