sexta-feira, 18 de junho de 2010

Outro caminho...

Hoje José Saramago pegou outro caminho. Uns chamam a isto de morte, eu já chamei muitas vezes de desercarnação, Falabella diz "foi pro andar de cima"... Eufemismos. Todos... Acredito que seja apenas um hífem. Todos fazemos parte de uma mesma vida, embora por vários caminhos, e tudo se resume a SAUDADE. Saramago é, dos escritores que conheci na fase adulta, um dos que mais amo. Tenho todas as suas obras. Uma delas comprei no país dele, porque se chama VIAGEM A PORTUGAL e pensei que esta eu teria que trazer de lá, como trouxe tantas emoções... A primeira vez que fui a Portugal foi para fazer um trabalho de leitura sobre o brasileiro (que amo muito), Bartolomeu Campos Queirós e "o palco" foi a Biblioteca Municipal José Saramago, em Beja, no Alentejo. Daí foram várias as misturas livro-leitora-literatura-vida-admiração... E hoje, o saldo são os livros. Já não o poderei ver pessoalmente, como desejei. Mas, 50 anos passam voando! Daqui a pouco nos veremos. Lembranças aos meus parentes, amigos e escritores, que já estão aí. Em especial ao seu homônimo José, o de Alencar, cujas obras abriram caminho dentro de mim para o desejo de devorar tudo de um só autor! E a Fernando Pessôa, que já me banhava do mar e das palavras lusas, antes que eu conhecesse as suas. Deus o receba, senhor agnóstico! E provoque ótimas histórias de afectos dentro de si!

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Histórias espalhadas pelo caminho

Como em "João e Maria", marco meu caminho, como já o disse tantas e tantas vezes, com histórias. Mas há algumas que escrevo e gosto de deixar no meio do caminho, não como a pedra de Drummond, mas como miolinhos de pão das crianças do conto acima referido. - Para marcar minha trillha?! - alguém poderia me perguntar. - Não! - eu me apressaria em dizer - Não mesmo! Estas histórias que escrevo, deixo-as livre para pequenos (ou grandes) pássaros-leitores irem devorando... Então, eis que algumas vezes, deixarei postadas, histórias que não moram e, possivelmente, não morarão em livros. São histórias livres, pra quem quiser ler, copiar e multiplicar (não esquecendo, é claro, de citar a fonte, por favor!) Um afago!

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Capítulo 10: E a família continua crescendo!

Já estão prontos mais dois livros: CONTOS E OUTROS TANTOS, onde reúno cerca de vinte e cinco crônicas e dois pequenos contos, que já dormem na gaveta de minha estante há oito anos!; e UM MENINO CHAMADO NEGRINHO, que é meu jeito de contar a lenda no Negrinho do Pastoreio. Esta será minha primeira obra ilustrada. Já está ganhando cores e formas, pelas mãos do artista africano, residente na cidade do Porto, Luís Silva. Vale a pena conferir as belezas que o Luís já trouxe ao mundo. Visitem http://www.cybersilva.com/ E uma outra obra vem ganhando forma. Será meu primeiro livro (dito) para crianças. A ideia na verdade não foi minha. Roseana Murray quando leu o poema "Marina", que mora lá POEMAR, sugeriu-me escrever poemas brincando com os nomes, mas voltados para crianças. Desde então vem nascendo Todos os nomes, que, eu sei, é título de umas das obras de Saramago, mas a temática é absolutamente outra e, desta forma, aproveito para homenagear esse escritor que tanto gosto. A verdade é que depois que as trilhas foram abertas (e sempre estiveram abertas como minhas próprias veias), nunca mais as histórias deixaram de fazer caminho por dentro de mim... Graças a Deus!

Capítulo 9: Simples, o terceiro filho de papel

Gestado durante o ano de 2009 e repleto de poemas guardados entre as minhas leituras, meu terceiro livro nasceu em março deste ano.
O lançamento aconteceu durante as comemorações da Semana da Baixada e o cenário, como das outras duas vezes, foi o Instituto Histórico da Câmara Municipal, onde Tânia Amaro, sua diretora, sempre foi parceira e apoiadora.
Lá, junto à minha mãe, minha filha e cerca de cinquenta outros amigos e duquecaxienses, dei à luz ao livro mais ousado e feminino dos três.
Simples, que na quarta capa traz comentários de Roseana Murray e Bia Bedran, reúne poemas dos mais suaves aos mais sensuais e ousados. Eróticos mesmo.
Veio ao mundo como fruto do desejo de contar da minha essência feminina, forte e nada sutil, tantas vezes guardadas no mais recôndido das gavetas (como fazem muitas mulheres, escritoras ou não).
No entanto, é, exatamente, como foi batizado: simples.
Não acredito que haja mulher que não se reconheça nele, em algum momento, em algum poema.
Aqui, gravo apenas uma brincadeira que fiz com a gramática.
Lição
No princípio era o verbo.
Depois vieram os pronomes.
Mas na verdade,
eu e ele nunca formamos
um "nós"
Tu sabes.
Todos sabem.
E eles se valeram disso
pra tornar a nossa história
apenas uma
figura de linguagem...

Capítulo 8: Pra você saber tintim por tintim...

Se você quiser saber tintim por tintim do que andei fazendo através do "Livro, Arte e cia", basta acessar www.livroarteecia.com.br

Capítulo 7: "Livro, Arte e Cia", marca e sonho registrados


Um dia os livros e a arte combinaram de ficar tatuados em mim.
Amante dos dois, mobilizei, na escola em que trabalhava na época (abril de 2002) uma feira artístico-literária.
Foi lindo!
Todos os professores do ensino noturno ajudaram. Se envolveram neste meu sonho, que se tornaria um marco em minha vida. Lembro-me daquela noite como se fosse hoje. Eram livros, esculturas, pinturas, selos antigos, músicas e suas letras, espalhados pela escola toda. Claro que deu trabalho, mas foi lindo ver professores e alunos no mesmo ato: ler, descobrir, bisbilhotar, sentir.
E o que era pra ser "apenas" uma feira de livros e exposição de arte, virou um Programa de Incentivo à Leitura.
Foram muitas as ações. Muita gente boa veio a Duque de Caxias através deste Programa. Com recursos próprios. Com empenho, garra e muita vontade de semear nesta terra em que nasci, o que há de melhor aqui e em outras partes deste nossos país e do mundo, como não?! Afinal passaram por aqui escritores e outros profissionais de renome internacional. Fui descobrindo que é mais fácil do que pensamos, fazer o bem, proporcioná-lo aos outros, sem grandes ônus financeiros, mas com grande investimento em credibilidade, confiança, verdade! Outras pessoas se sensiblizaram e isso é mágico! Minha vida mudou muito de lá pra cá. Eu fui de lá pra cá.Atravessei o oceano duas vezes. Isso tudo por causa do Livro. Isso tudo por causa da Arte. E sempre em muito boa Cia!

Capítulo 6: Palavras, silêncios e mar... Paixões

"...a felicidade existe, disse a voz desconhecida, e pode não ser mais do que isto: mar, luz e vertigem."
Assim escreveu José Saramago escreveu na página 259, do seu "Jangada de Pedra", publicado pela Companhia de Bolso.
Desde que fui apresentada a este autor português, pela amiga e excelente professora de Língua Portuguesa, Margareth Mallet, não o largo. Foi difícil entende-lo a princípio, mas depois que peguei o jeito, ah, que coisa! O "Jangada" é um dos meus preferidos. Eu o encontrei na banca de jornais um dia. Li a resenha, levei pra casa e devorei horas a fio. A frase que deixei acima é um delírio pra mim. É um presente.
Amo mar, luz, claro, e as palavras pouco usadas. Vertigem. Torpor, filigranas, relicário, colibri, palavras em desuso, sabe. Amo. Todas. Ou quase todas. Cheiram a curiosidade, delicadeza e me remetem há um tempo em que todos tinham tempo. São poéticas. São diferentes, como o próprio mar, a cada minuto o é. Ah...
Mas o que quero é contar sobre o convite que meu amigo Celso Sisto, me fez lá pelos idos de 2002. Ele que também é escritor, e dos bons, foi um dos meus primeiros, e mais assíduos leitores, e vivia me estimulando a pôr pra fora as palavras que eu guardava por dentro de mim, mas em forma de poemas. Então, como vinha dizendo, um dia ele provocou: "Hellenice, você deveria escrever poesias e reunir algumas num livro".
Bem, como já concordava com Saramago, antes mesmo de conhecê-lo, a provocação do Celso fez nascer o que chamei de Projeto Poemar. Poesias regadas a mar. Simples, mas fruto dos meus sentires mais variados. Dos meus mais densos silêncios. Umas vertigens de mim!
Poemar foi publicado em novembro de 2007 e para minha felicidade tiveram por moldura, as fotografias de Paulo Hauer, fotógrafo de extrema sensibilidade que doou suas fotografias por amor à Arte!

Capítulo 5: Algumas "Cenas"

As crônicas a seguir constam do meu livro "Cenas Comuns", publicado pelo "Livro, Arte e Cia" e "Associação dos Amigos do Instituto Histórico de Duque de Caxias", em 08 de março de 2007.
Cena 11 – Então ele respondeu
Meu pai era o tipo do cara de que me lembro quase sempre com um livro ou jornal entre as mãos. Geralmente eram livros à noite e jornais nas manhãs de domingo.
Quando ele morreu, eu tinha dez anos (quase onze) e se toda morte traz lá sua desculpa, a dele foi das mais esfarrapadas: acidente de trânsito, em frente à nossa casa e na calçada! Difícil de ler, não?! Imagina de viver aos dez anos!Mas, esfarrapada ou não, difícil ou não, pra tudo nessa vida a gente tem um parceiro que ajuda bastante – o tempo.
E o tempo passou. Passou muito até que aquela imagem de homem-leitor fizesse, na minha cabeça, o sentido que faz hoje.Naquela época, estávamos na década de 70 (aprendi a ler, oficialmente, entre 75 e 76). Década da lei 5692 – barra 72. Lembro-me de que líamos um livro por bimestre, a partir da quarta série. Mas, vivas mesmo na lembrança, ficaram foram as malfadadas “provas do livro”! Como eu odiava prova do livro! Irc! Se ainda fossem as bonecas1... Qual o quê?! Eram provas mesmo, no sentido de AVALIAÇÃO.Vinham encartes dentro das obras e nós éramos quase obrigados a decorar as respostas, OBJETIVAS, que deveríamos dar neste ou naquele ponto. Sem tirar nem pôr anotações.Ler pra mim era uma TORTURA, um SACO.
A primeira prova do livro que fiz foi a partir da leitura de O Gigante de Botas, de Ofélia e Narbal Fontes, editora Ática, Coleção Vaga-lume. Quem lembra? As obras, sempre oportunas, sujeitas ao uso despreparado que só o tempo e a vontade de muitos profissionais corrigiriam.1980.Acabei a leitura do livro, obrigada, num fim de domingo (a prova seria na manhã seguinte). Meu pai até que estimulava, mas, que nada, aquilo pra mim era tortura, na boa, como diriam os pré-adolescentes de hoje.Devo ter tirado nota pra passar, porque não fiquei com nenhuma má lembrança da prova.Muitos anos depois reli o livro. Gostei muito. Dele e do “Cem noites tapuias” lido também lá em 80. E aí fiquei pensando: “Por que não gostei deles lá atrás? Será que era só porque eu era criança? Mas eles eram pra minha faixa etária?! Por que tão distantes então?”.Não. Absolutamente. Não foi a minha idade que me separou da obra, foi o oferecimento. O objeto livro não chegou a mim como objeto encantado. A história não chegou como história. Chegaram ambos como instrumentos de avaliação. E nada mais difícil em qualquer idade e sob qualquer pretexto do que ser avaliado!... Pesa, aflige, assusta.Prova do livro.O que prova sobre meu “aproveitamento” de uma leitura senão minha vontade de partilhá-la com todas as pessoas de quem gosto?! Minha vontade irrefreável de contar pra todo mundo?! Escrever respostas “pré-fabricadas” sobre este ou aquele personagem, essa ou aquela parte, sobre (e isto é o pior) o que quis dizer o autor, me tornam, talvez, uma máquina copiadora. Talvez nem isso.E é aí que volto à imagem de meu pai.Absorto, estático, exceção feita à mão, que passava as páginas, e aos olhos, sempre ávidos. A face interna da leitura não podia, nem posso, ver. Mas aquela imagem, deliciosamente compenetrada, definiu e redefiniu meus encontros com as leituras, muitas vezes!O que o fazia ler sem ninguém mandar, sem ninguém pedir, ler pra não fazer prova nenhuma? Ler e ser feliz! Porque isso sempre ficou claro pra mim, ele era feliz lendo. Minha mãe diz até hoje que o mundo poderia despencar que, se meu pai estivesse lendo, não ouviria mesmo!A leitura o nutria.Quando catorze anos após sua partida comecei a trabalhar como mediadora de leitura, sem perceber, fui interiorizando textos pra contar, transformando-me pouco a pouco e sem saber em contadora de histórias... Claro que fiz umas excursões sobre Júlias e Sabrinas, José de Alencar e Exupéry antes, mas foi quando vi o brilho que refletia no olhar dos meus ouvintes, que me lembrando de meu pai, fui construindo meus conceitos sobre a prática leitora. Não adianta empurrar nada goela abaixo, que dirá livros! Vale dar dica, vale oferecer, vale contar ao pé do ouvido (e como vale!), mas tem que seduzir, alimentar, semear. Isso! Semear é o verbo. Semear e deixar que o dono da terra cuide do resto, na hora que achar melhor. Vale ajudar, mas sem cobranças. Ninguém obriga ninguém a ler. Que nos valha Daniel Pennac2! Semear e seduzir. Sempre. Sem medo.Muita água rolou no rio de minha vida, mas não precisaria de muito tempo para que, um dia, conversando com minhas irmãs mais velhas, me lembrasse de um diálogo que se tornou marcante:Ah, pai, eu acho ler muito chato! – tinha entre oito e dez anos.Então ele respondeu:Minha filha, quando você perceber a importância da leitura em sua vida, você nunca mais vai parar de ler, nunca mais.Além de tudo, meu pai, leitor inveterado, era visionário...A lição foi aprendida.
Cena 24 – Presentes do tempo
Tinha uma história inteira voando sobre minha cabeça quando me sentei para escrever. Só que aí o avião decolou, e ela, embarcada confortavelmente na primeira classe, foi junto.Não sei pra onde vão as histórias que nos abandonam quando ainda não foram escritas, mas sei o quanto delas permanece morando dentro de mim. Às vezes como suspiro, às vezes como dúvida, como um lugar vago do qual sinto saudades... No final, as histórias sempre acabam virando outras histórias.Não me lembro de ter ouvido muitas na infância, mas não esqueço de minha avó deitada no meu quarto, contando seus terrores pros meus temores sem fim! Do meu pai tocando acordeão, sempre a luz de velas (não me lembro do som, só das cenas, que foram tantas meu Deus!, todas em sépia). E gravado em água forte, tenho a lembrança de minha mãe deitada ao meu lado na cama dela, me contando a tartaruga e a lebre.(Não sei como, mas guardo a visão aérea desse momento! Vai lá entender memória).Era verão e a janela do quarto estava aberta. Um vento agradável, como o que sinto agora, talvez soprasse de lá, porque minha lembrança é muito fresca. Naquele dia a voz de mamãe era mansa e matreira a contar as peripécias da frágil tartaruga pra cima do coelho, dito sabido! Lembro-me de que interagi o tempo todo: pedi detalhes, tirei dúvidas e sorri. Lembro-me perfeitamente de ter sorrido. Deve ter sido um riso bem gostoso, porque eu não tinha mais que três anos e nessa fase todo sorriso é delicioso de ouvir!Minha memória sempre foi boa! Mas esta é a melhor memória que tenho de minha mãe! Com certeza ela fez muito mais por mim, mas naquela hora, ela foi minha contadora de histórias. Só minha! E cheia de carinho!Deitadas em sua cama, numa noite de verão, debaixo de janelas venezianas, corremos juntas pra não perdermos aquela corrida de todos os séculos: a contra o tempo! Porque ao me contar a história, minha mãe não fazia mais do que parar, para sempre, aquele tempo na minha memória.Não me lembro de outro, mas isto não importa. Houve este. E haverá sempre que eu quiser, para sempre.As histórias pertencem ao tempo presente, sempre que são lembradas. São presentes do tempo que passamos com os outros. São caixas decoradas de afeto, atenção, afago, lágrima, riso, gratidão. E têm sempre um laço de fita, bem lindo!Que bom que a história que eu ia escrever pegou o avião, acho que precisava mesmo aterrissar na minha infância pra reencontrar esse presente que o tempo me deu: o meu próprio tempo.
Cena 26 - Companhia possível
Foi no Cais do Sodré, Lisboa.Era uma linda manhã de setembro e o outono ainda não dava o ar da graça. O sol fazia brilhar diamantes no colo do Tejo e eu aguardava, na paragem de táxi, o carro da prefeitura de Beja.Distraía-me olhando a dança das gaivotas pelo cais, pelas árvores e telhados. Elas voavam juntinho a mim (é como se as visse agora, embora seja madrugada). Brinquei de pique-esconde com o sol: estava comigo e o esconderijo dele era entre as folhas da árvore donde eu contava o não-tempo...O som da lancha Aroeira fez-me desviar o olhar e segui-la um bom tempo. Foi aí que vi: três marinheiros jovens e sorridentes caminhando do outro lado da rua. Na mesma hora lembrei-me de “Noite de Almirante”, do Machado. Este conto me apaixonou quando eu contava catorze anos. Aquela espera do marujo e sua decepção foram, e são, tão minhas...E ali, aguardando partida, refleti-me naquelas fardas. Acompanhei os marinheiros até o sol correr, bater um-dois-três e eu sair da brincadeira.Olhei pro relógio e vendo o longo atraso, resolvi telefonar.O orelhão engoliu meus céntimos, eu em seco e o tempo, as horas.Quando já ia bufar, ouvi dum carro azul cobalto um homem gritar a pergunta: “Beja?!”. E eis que minha âncora é retirada. Ao lado de um lusitano e um espanhol, eu, brasileira, embarcava numa viagem de três horas, pra daí a três dias passar três minutos lendo na cidade branca, quente e iluminada do Baixo Alentejo. Lá, embora ninguém fosse saber, eu seria o marujo vindo de mais longe, vivendo minha “noite de almirante” nos braços do meu idioma, como única companhia possível.

Capítulo 4: Mas onde estavam os livros?

Xiiiiiii. Mas onde estavam os livros na minha vida?! Eles sempre estiveram por perto. Sempre. Minha casa tinha uma estante cheia. Havia o exemplo do meu pai, mas não fui leitora assim de cara, como algumas pessoas, não. Eu até que mexia neles, mas... Certa vez, aos quatro anos peguei um livro pra "ler" pro meu irmão recém nascido, só porque a capa era azul, linda! A família virou platéia, foi divertido. Comecei a ler, oficialmente aos seis anos, com a professora Letícia, nome cujo significado é aquela que traz a luz, e ela fez mesmo isso, com tal carinho que não tive dificuldades para decodificar. Mas demorei a me tornar leitora. Conto isso também no meu "Cenas Comuns". Lembro-me de que aos dez anos li dois livros que a escola mandou. Mas o que às vezes ainda me faz corar é a lembrança de um dia, na segunda série, quando eu tinha oito anos. Meus pais tinham me dado um livrão do Tom e Jerry. Era mais um gibizão que livro propriamente. Não importa. Eu queria mostrar a professora. Quis tanto, insisti tanto, que ela gritou pra eu sentar. Ao final da aula, quando a maioria já tinha ido embora, chamou-me dizendo: "Vai, Hellenice, me mostra o livro agora". Eu mostrei, né... Escrevo isso, não para culpar A ou B, mas principalmente para que professores, como eu, que atuem com criança, jovem, adulto ou velho fiquem mais atento. Enfim. Eu brincava de "quem lê melhor", com um tio e uma irmã, mas não encarava livro sozinha. Ganhava gibi alguns domingos. Lembro-me até do jornaleiro, um senhor moreno e sorridente que passava em nossa casa toda manhã pra vender os jornais e, às vezes, como disse, gibis. Lia as lições dos livros didáticos. E pintava as ilustrações - que ram sempre em preto e branco. Aliás, essa era a parte que eu mais gostava! (Um dia a arte e os livros me chamariam pra uma conversa de gente grande...) Pouco antes de falecer, meu pai me deu O Pequeno Príncipe. Eu não li. Aos doze ganhei uma afilhada.Era muito frágil. Ficou muito doente. Então, eu, que era católica, prometi que se ela vivesse, eu leria um livro da minha mãe, sobre a vida de Jesus. Era um dos maiores da casa. Márcia sobreviveu. E eu, me tornei leitora. Ela me batizou. Salvamo-nos! Depois da promessa paga, a duras penas, verdade, passei pro Pequeno Príncipe. Dele pras Júlias e Sabrinas, todos os de José de Alencar da estante, um tiquinho disso, outro daquilo. E por aí foi. Na sétima e oitava séries do ensino fundamental tive um excelente professor de Língua Portuguesa, o Almeida, do Instituto Nossa Senhora da Glória, o nosso Glorinha. Com ele conheci muita gente boa da Literatura. Tive contato com obras que visito e indico até hoje. "A morte tem sete herdeiros", por exemplo, mostrei recentemente pra minha filha e ela gostou tanto que passou pra duas primas. "Caminhando na chuva", do Charles Kiefer, deixou tão boas recordações que fiz questão de cumprimentar o autor, pra agradecer, na Feira do Livro de Porto Alegre, em 2008, onde ele fora homenageado. "Encontro marcado", do Fernando Sabino, foi motivo para que eu reproduzisse a história-título com mais duas amigas, no Ensino Médio (só que nós cumprimos!). E o apaixonante "Noite de almirante", do Machado, ficou tão dentro de mim que saiu e virou texto meu. Vou postar aqui também. Fera nas escolhas, o Almeida! Bons livros. Boas lembranças. Bom profissional! Isso é sempre um diferencial na vida da gente. Eu tive e tenho sorte. Aos dezessete fiz minha opção religiosa e li muuuuuuuuuito, muito mesmo. Tornei-me uma devoradora de obras dos mais variados estilos literários. Primeiros relacionados à minha religião. Depois, com o tempo, um pouco de tudo. Veio a faculdade, onde a indisciplina de só ler o que me dava prazer atrapalhou um pouco. Fui me disciplinando (bem pouco, verdade); veio o trabalho como contadora de histórias e com ele tanta gente boa que nem ousaria nomear, para não correr o risco de esquecer alguém. Veio a Arteterapia com outros tantos livros, sendo o mais forte deles, de cabeceira até hoje, o "Mulheres que correm com os lobos", da Clarice Pinkóla. Veio a terapia, onde fui recebida com texto de Clarice Lispector e presenteada com uma obra dela quando obtive "alta". Um tempo antes, em agosto 2001, veio a mágica presença de Lygia Bojunga! O primeiro livro dela que li foi "A bolsa amarela", eu contava 31 anos. Leitora tardia de Lygia, sou absolutamente encantada por sua criação. Os mais especiais pra mim são "Corda Bamba" e "Retratos de Carolina", me acho uma mistura de "Maria" e "Carolina" (lendo os dois entenderão um pouco). Antes de completar um ano, em junho de 2002, já tinha lido 16 das 18 obras publicadas por ela, até então. E em abril deste mesmo ano, dois meses antes então, eu iniciara o Programa de Incentivo à Leitura "Livro, Arte e Cia", que procuro conduzir até hoje. Semeando aqui e ali, nesta cidade em que vivo, pequenos grãozinhos, na esperança de ajudar novos leitores, novos apaixonados pela Literatura. Cinco anos depois nasceram, através deste Programa meus dois filhos de papel: "Cenas Comuns" e "Poemar". Meus jeitos de dizer crônicas e poesias. Meus pensares encardenados. Bem, se alguém hoje me perguntasse onde estão os livros em minha vida, eu responderia com outra pergunta: "-Onde está minha vida, sem os livros?"

Capítulo 3: Quem me devolveu as histórias?

Fiquei muito tempo afastada das histórias. O tempo faz isso. A gente faz isso. Porque a vida cobra tempo o tempo todo, e quem prefere pretere. Embora nem sempre seja preferência, e sim necessidade mesmo. A gente tem que fazer tanta coisa pra se manter, que vai esquecendo até que gosta de algumas coisas... O fato é que só aos 24 anos, quando fui trabalhar num CIEP é que as histórias foram me achando de novo.
Nós - eu e todas as outras professoras aprovadas no concurso de 1994 - nos apresentamos no dia 07 de março.
Neste dia as professoras orientadoras (POs) do CIEP 198, onde fui lotada, nos disseram que três de nós trabalharíamos numa função nova, a de professor de estudos dirigidos...
Todas caladas e eu, que trabalhara com EJA e queria ter continuado com esse grupo que o concurso não abrangeu, me ofereci. Fui a primeira a dizer eu quero, sem saber exatamente como seria.
Mas foi ótimo!
Tínhamos duas salas para os estudos dirigidos: uma chamada Desafio de Pesquisar, e a outra Prazer em Ler. Adoraaaaaaaava essa última! Era a que eu mais enfeitava e onde mais me esbaldava!
Li e conheci muita coisa de Lietarua Infanto-juvenil neste espaço.
De algum modo foi lá que, sem saber, nasci como contadora de histórias!
Engraçado... A primeira história que eu contei oralmente, resolvi decorar porque achei muito grande pra ler e como não tinha ilustrações, tudo bem não mostrar o livro página por página. Era o conto "Os três fio de cabelo de ouro do diabo". Eis a primeira história que contei oralmente em público
E para dezoito turmas de um CIEP!
Para algumas contei muitas e muitas vezes mais, a pedido deles.
Nesse tempo eu estudava Filosofia na UERJ e a diretora pediu-me que procurasse o grupo "Confabulando". Nunca procurei. Uma lástima. Mas, é aquilo, chegava em cima da hora sempre, etc etc. O fato é que não escutei com atenção o chamado. Eram as histórias me chamando de volta! Como professora, elas seriam excelentes aliadas. Mas, não dei trela. Naquele 1994 li muitas histórias. Mas adorava contar "Os três fios", eu dominava cada vez mais a histórias daquele menino sortudo. Afinal, eu também sou sortuda! Muito! Depois eu conto uns porquês. Bem, mas aquele ano acabou. O outro. E mais outro. No natal de 1996, ganhei o meu maior presente: engravidei. Virei lua, nova, crescente, cheia. Dentro de mim um mar inteiro cresceu (e muito). Na primavera de 97, nasceu menina, meu mar-Marina. ELA SIM, ME DEVOLVEU AS HISTÓRIAS! Toda minha vida mudou depois da minha filha. Desculpem-me o lugar comum. Mas eu sou mãe, ué?! E quem não entender, só lamento. Depois que meu eterno presente de natal nasceu, as histórias voltaram com toda força! Lembro-me de que numa das noites em que eu a embalava (deitava com ela ao seio pra cantar histórias), desejei contar-lhe Pinóquio e me dei conta de que não lembrava. Até então eu me contentava em cantar pra ela, mas agora queria contar, "contar de boca". Era janeiro de 1999. Em junho, a Secretaria Municipal de Educação ofereceu um curso de formação para contadores de histórias. Fiz inscrição. Os formadores?! Lúcia Fidalgo e Benita Prieto. Grupo Morandubetá = Muitas histórias = Foi assim. Marina se alimentando do meu seio, levou-me à origem de tudo. Num amamentar inverso, simultâneo, forte, poético. Foi ela que me devolveu as histórias. Minha filha. Agora, de junho de 1999 até hoje, muita história rolou. Mas muuuuuuuuuuita. Muita meeeeeeeeemo. É moranduba a beça. (Até minha filha agora escreve histórias!)

Capítulo 2: Como eu e as histórias nos encontramos

Quando comecei a contar histórias, dizia sempre que na minha infância tinha ouvido poucas.
Hoje vejo que cometi uma grande injustiça.
Minha mãe contou-me a incrível história da tartaruga e a lebre, quando eu tinha por volta de três, quatro anos. E o fez de modo tão inesquecível que contei pra todo mundo no meu livro "Cenas Comuns".
A mãe dela contava causos de terror e histórias da família como ninguém!
O filho dela, meu tio Fábio, contava e me ensinava a contar piadas escabrosas, para assombro e risadas mordidas de minha mãe e da família toda.
(Com ele eu fiz, com certeza, meu primeiro curso de formação)
Meu avô materno, contava suas histórias de vida, passadas lá pelas Minas Gerais e cantava, com a voz mais triste, verdadeira e tocante que minha infância guardou. Sobretudo cantando "Índia". Nenhum membro da família herdou o jeito desse cantar, mas meu irmão é locutor, e sua voz é um capítulo à parte. Sobre meu avô e suas lembranças quem me fez recordá-las foi minha irmã Tânia Regina, que o adorava e eu só vim saber agora, depois de adulta.
Meu pai...
Meu pai era uma árvore de leituras.
Se alimentava de muitas histórias. Deixava que corressem seu corpo-tronco como seiva. Exalava o perfume desses aprendizados, quando nos chamava atenção. E nos fazia chorar, sem usar de violência alguma. Transformava suas emoções em poesias. Mamãe com carinho de seu caderno de poesias, mas um dia, assaltaram êlá em casa e o levaram, sei lá o porquê. Ficou apenas um poema curiosamente entitulada "Despedida", escrito exatamente 14 anos antes dele morrer. Papai tocava o acordeão quando faltava luz. Eu quase rezava pra faltar luz todos os dias. Ele cantava cantigas populares, e a que mais me recordo é aquela que diz assim:
"Fiz a cama na varanda
Me esqueci do cobertor
Deu um vento na roseira
Ah, meus cuidados me cobriu
Toda de flor".
Cantei esta canção lá no Porto, pras alunas da Escola Superior de Educação de Paula Frasinetti. Levei muitas outras histórias comigo naquele dia... Mas, isso conto depois.
O acordeão era do meu avô, pai dele. O Seu Ferreira.
Vovô Ferreria era semianalfabeto, escrevia poesias e fazia repentes, com ou sem sua harmônica (que é como ele chamava o acordeão). Não cheguei a ver isso, mas organizei em livro com suas poesias, graças a sua única filha, Tia Flor, que me passou tudo antes em 2007.
Ah, ela contou-me histórias também. Muitas. Sobre meus avôs, meu pai e sobre esta minha família (a paterna). E levou-me ao Frade, onde meu pai viveu quando criança.
Agora percebo que poderia escrever horas a fio, a me lembrar tantas e tantas outras histórias e seus contadores.
Dona Carlita, por exemplo, uma vizinha do tempo em que moravamos na "29", como chamamos até hoje a casa do Bairro Parque Felicidade, onde moramos até papai falacer. Ela contava terrorzão!!! Eu nem andava sozinha depois. Horrível!
E ainda tinham as histórias de Lobato, na TV (meio misturadas, mas deu pra me apaixonar pelo Escamado, ah!); as do Daniel Azulay; as que eu e meus irmãos inventávamos pra brincar de novela, pra brincar de brincar mesmo.
As histórias que eu sonhava sozinha, no sofá, deitada com o corpo no assento e as pernas no encosto, olhando os pardais pela janela veneziana da sala.
Nossa, quanto tempo!
Bem, as histórias chegaram assim, na minha vida, por todos os lados, e com vários jeitos, como, eu acho, acontece com todo mundo.
A gente é que às vezes não se dá conta...
E você, já se deu conta?

Capítulo 1 - Sobre como virei Hellenice com H e "LL"

Quando nasci, meu pai já havia se encarregado de me reservar quatro irmãs. Quis o destino (neste caso representado por meu pai) que o nome de todas elas começassem com a letra E. Viúvo, ele se casara com um broto de olhos azuis e cintura fina chamado Elza. Parênteses. Não herdei dela olhos nem cintura, mas meus bolos são maravilhosos! Bem, meu pai então vivia com cinco mulheres cujos nomes começavam com E. A primeira filha deste casamento não fugiu à regra, mas resolveu logo logo ir morar no céu, que é mais fresco e de onde se vê tudo melhor. 1970. Ano do tri! Tri legal! Embora a cegonha que veio me trazer ao mundo fosse estrábica e ao invés de me deixar em Caxias do Sul, tenha me atirado em Duque de Caxias mesmo (que hoje aprendi a amar!!), tive a sorte de aportar nesta família. Faltava-me um nome... Minha mãe escolheu Débora, mas minha avó materna vetou. Meu pai, esperto, sugeriu Elenice. Minha mãe, determinada, aceitou, desde que começasse com H. Feito. Mais ou menos, porque ao chegar no cartório, meu pai adicionou ao H, dois "eles". Pronto. Daí, passo a vida a dizer "é com H e dois 'eles' " antes de dizer meu nome em qualquer lugar. E, claro, pago sempre duas letras a mais em gravações. Mas, sou um divisor de águas na família. Se antes todas tinham o nome com E, depois de mim cada um teve uma inicial diferente - a família é grande! Como asas de uma gaivota trago os dois "eles" que equilibram um H pra lá de importante: meu começo.

Prólogo: Um breve autorretrato

Neta de um padeiro, olhos cor dos prados e uma lavadeira-xamã, com olhos de céu-à-noite; de um sapateiro-poeta e uma pescadora silenciosa; sou filha de um porteiro-pesquisador e uma guerreira com os olhos azuis mais claros e intensos que conheço.
Sou a mãe da Marina! Raíz da minha fertilidade, fruto do desejo de minha alma e flor-menina do meu coração.
Sou professora. De bebês, crianças, jovens, adultos e velhos que me ensinam sobre amar.
Sou feliz! E muito.
Grata a Deus que me ensinou a andar duas vezes, só nesta vida, e a levantar sempre que caio.Sou canção do Verbo Criador, feita mulher. Agradeço por isso. Sou barco. Tenho o timão do destino sempre entre as mãos suadas pelo desejo-de-mar... E o coração de fada, que voa, ama e odeia com força, com o peito cheio. Mas é o bom afeto que sempre fica.
Amo a chuva fina.
As palavras refinadas.
A neblina, que transforma tudo em sépia.
Amo o sol forte. O abraço que sufoca.
As bocas que ensinam. O palavrão na hora certa.
Amo o Amor, sempre. Tese e antítese humanas, minha síntese assina Hellenice Ferreira.
Mas sou mais (às vezes do mesmo): sou Hellenice. Hellen. Hellê. Lellê. Lê.
Nice, só pra família (qualquer tentativa externa de uso deste apelido
eu repilo!).
Sou o eterno-retorno, o jardim de Epicuro (?!), o rio heraclitiano. Socrática. Caótica. Existencialista. Realista à beça!
Sou contadora de histórias, mas acima de tudo: POETA.