segunda-feira, 7 de junho de 2010

Capítulo 5: Algumas "Cenas"

As crônicas a seguir constam do meu livro "Cenas Comuns", publicado pelo "Livro, Arte e Cia" e "Associação dos Amigos do Instituto Histórico de Duque de Caxias", em 08 de março de 2007.
Cena 11 – Então ele respondeu
Meu pai era o tipo do cara de que me lembro quase sempre com um livro ou jornal entre as mãos. Geralmente eram livros à noite e jornais nas manhãs de domingo.
Quando ele morreu, eu tinha dez anos (quase onze) e se toda morte traz lá sua desculpa, a dele foi das mais esfarrapadas: acidente de trânsito, em frente à nossa casa e na calçada! Difícil de ler, não?! Imagina de viver aos dez anos!Mas, esfarrapada ou não, difícil ou não, pra tudo nessa vida a gente tem um parceiro que ajuda bastante – o tempo.
E o tempo passou. Passou muito até que aquela imagem de homem-leitor fizesse, na minha cabeça, o sentido que faz hoje.Naquela época, estávamos na década de 70 (aprendi a ler, oficialmente, entre 75 e 76). Década da lei 5692 – barra 72. Lembro-me de que líamos um livro por bimestre, a partir da quarta série. Mas, vivas mesmo na lembrança, ficaram foram as malfadadas “provas do livro”! Como eu odiava prova do livro! Irc! Se ainda fossem as bonecas1... Qual o quê?! Eram provas mesmo, no sentido de AVALIAÇÃO.Vinham encartes dentro das obras e nós éramos quase obrigados a decorar as respostas, OBJETIVAS, que deveríamos dar neste ou naquele ponto. Sem tirar nem pôr anotações.Ler pra mim era uma TORTURA, um SACO.
A primeira prova do livro que fiz foi a partir da leitura de O Gigante de Botas, de Ofélia e Narbal Fontes, editora Ática, Coleção Vaga-lume. Quem lembra? As obras, sempre oportunas, sujeitas ao uso despreparado que só o tempo e a vontade de muitos profissionais corrigiriam.1980.Acabei a leitura do livro, obrigada, num fim de domingo (a prova seria na manhã seguinte). Meu pai até que estimulava, mas, que nada, aquilo pra mim era tortura, na boa, como diriam os pré-adolescentes de hoje.Devo ter tirado nota pra passar, porque não fiquei com nenhuma má lembrança da prova.Muitos anos depois reli o livro. Gostei muito. Dele e do “Cem noites tapuias” lido também lá em 80. E aí fiquei pensando: “Por que não gostei deles lá atrás? Será que era só porque eu era criança? Mas eles eram pra minha faixa etária?! Por que tão distantes então?”.Não. Absolutamente. Não foi a minha idade que me separou da obra, foi o oferecimento. O objeto livro não chegou a mim como objeto encantado. A história não chegou como história. Chegaram ambos como instrumentos de avaliação. E nada mais difícil em qualquer idade e sob qualquer pretexto do que ser avaliado!... Pesa, aflige, assusta.Prova do livro.O que prova sobre meu “aproveitamento” de uma leitura senão minha vontade de partilhá-la com todas as pessoas de quem gosto?! Minha vontade irrefreável de contar pra todo mundo?! Escrever respostas “pré-fabricadas” sobre este ou aquele personagem, essa ou aquela parte, sobre (e isto é o pior) o que quis dizer o autor, me tornam, talvez, uma máquina copiadora. Talvez nem isso.E é aí que volto à imagem de meu pai.Absorto, estático, exceção feita à mão, que passava as páginas, e aos olhos, sempre ávidos. A face interna da leitura não podia, nem posso, ver. Mas aquela imagem, deliciosamente compenetrada, definiu e redefiniu meus encontros com as leituras, muitas vezes!O que o fazia ler sem ninguém mandar, sem ninguém pedir, ler pra não fazer prova nenhuma? Ler e ser feliz! Porque isso sempre ficou claro pra mim, ele era feliz lendo. Minha mãe diz até hoje que o mundo poderia despencar que, se meu pai estivesse lendo, não ouviria mesmo!A leitura o nutria.Quando catorze anos após sua partida comecei a trabalhar como mediadora de leitura, sem perceber, fui interiorizando textos pra contar, transformando-me pouco a pouco e sem saber em contadora de histórias... Claro que fiz umas excursões sobre Júlias e Sabrinas, José de Alencar e Exupéry antes, mas foi quando vi o brilho que refletia no olhar dos meus ouvintes, que me lembrando de meu pai, fui construindo meus conceitos sobre a prática leitora. Não adianta empurrar nada goela abaixo, que dirá livros! Vale dar dica, vale oferecer, vale contar ao pé do ouvido (e como vale!), mas tem que seduzir, alimentar, semear. Isso! Semear é o verbo. Semear e deixar que o dono da terra cuide do resto, na hora que achar melhor. Vale ajudar, mas sem cobranças. Ninguém obriga ninguém a ler. Que nos valha Daniel Pennac2! Semear e seduzir. Sempre. Sem medo.Muita água rolou no rio de minha vida, mas não precisaria de muito tempo para que, um dia, conversando com minhas irmãs mais velhas, me lembrasse de um diálogo que se tornou marcante:Ah, pai, eu acho ler muito chato! – tinha entre oito e dez anos.Então ele respondeu:Minha filha, quando você perceber a importância da leitura em sua vida, você nunca mais vai parar de ler, nunca mais.Além de tudo, meu pai, leitor inveterado, era visionário...A lição foi aprendida.
Cena 24 – Presentes do tempo
Tinha uma história inteira voando sobre minha cabeça quando me sentei para escrever. Só que aí o avião decolou, e ela, embarcada confortavelmente na primeira classe, foi junto.Não sei pra onde vão as histórias que nos abandonam quando ainda não foram escritas, mas sei o quanto delas permanece morando dentro de mim. Às vezes como suspiro, às vezes como dúvida, como um lugar vago do qual sinto saudades... No final, as histórias sempre acabam virando outras histórias.Não me lembro de ter ouvido muitas na infância, mas não esqueço de minha avó deitada no meu quarto, contando seus terrores pros meus temores sem fim! Do meu pai tocando acordeão, sempre a luz de velas (não me lembro do som, só das cenas, que foram tantas meu Deus!, todas em sépia). E gravado em água forte, tenho a lembrança de minha mãe deitada ao meu lado na cama dela, me contando a tartaruga e a lebre.(Não sei como, mas guardo a visão aérea desse momento! Vai lá entender memória).Era verão e a janela do quarto estava aberta. Um vento agradável, como o que sinto agora, talvez soprasse de lá, porque minha lembrança é muito fresca. Naquele dia a voz de mamãe era mansa e matreira a contar as peripécias da frágil tartaruga pra cima do coelho, dito sabido! Lembro-me de que interagi o tempo todo: pedi detalhes, tirei dúvidas e sorri. Lembro-me perfeitamente de ter sorrido. Deve ter sido um riso bem gostoso, porque eu não tinha mais que três anos e nessa fase todo sorriso é delicioso de ouvir!Minha memória sempre foi boa! Mas esta é a melhor memória que tenho de minha mãe! Com certeza ela fez muito mais por mim, mas naquela hora, ela foi minha contadora de histórias. Só minha! E cheia de carinho!Deitadas em sua cama, numa noite de verão, debaixo de janelas venezianas, corremos juntas pra não perdermos aquela corrida de todos os séculos: a contra o tempo! Porque ao me contar a história, minha mãe não fazia mais do que parar, para sempre, aquele tempo na minha memória.Não me lembro de outro, mas isto não importa. Houve este. E haverá sempre que eu quiser, para sempre.As histórias pertencem ao tempo presente, sempre que são lembradas. São presentes do tempo que passamos com os outros. São caixas decoradas de afeto, atenção, afago, lágrima, riso, gratidão. E têm sempre um laço de fita, bem lindo!Que bom que a história que eu ia escrever pegou o avião, acho que precisava mesmo aterrissar na minha infância pra reencontrar esse presente que o tempo me deu: o meu próprio tempo.
Cena 26 - Companhia possível
Foi no Cais do Sodré, Lisboa.Era uma linda manhã de setembro e o outono ainda não dava o ar da graça. O sol fazia brilhar diamantes no colo do Tejo e eu aguardava, na paragem de táxi, o carro da prefeitura de Beja.Distraía-me olhando a dança das gaivotas pelo cais, pelas árvores e telhados. Elas voavam juntinho a mim (é como se as visse agora, embora seja madrugada). Brinquei de pique-esconde com o sol: estava comigo e o esconderijo dele era entre as folhas da árvore donde eu contava o não-tempo...O som da lancha Aroeira fez-me desviar o olhar e segui-la um bom tempo. Foi aí que vi: três marinheiros jovens e sorridentes caminhando do outro lado da rua. Na mesma hora lembrei-me de “Noite de Almirante”, do Machado. Este conto me apaixonou quando eu contava catorze anos. Aquela espera do marujo e sua decepção foram, e são, tão minhas...E ali, aguardando partida, refleti-me naquelas fardas. Acompanhei os marinheiros até o sol correr, bater um-dois-três e eu sair da brincadeira.Olhei pro relógio e vendo o longo atraso, resolvi telefonar.O orelhão engoliu meus céntimos, eu em seco e o tempo, as horas.Quando já ia bufar, ouvi dum carro azul cobalto um homem gritar a pergunta: “Beja?!”. E eis que minha âncora é retirada. Ao lado de um lusitano e um espanhol, eu, brasileira, embarcava numa viagem de três horas, pra daí a três dias passar três minutos lendo na cidade branca, quente e iluminada do Baixo Alentejo. Lá, embora ninguém fosse saber, eu seria o marujo vindo de mais longe, vivendo minha “noite de almirante” nos braços do meu idioma, como única companhia possível.

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