quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Cena 11 - Então ele respondeu:

Meu pai era o tipo do cara de que me lembro, quase
sempre, com um livro, ou jornal, entre as mãos. Geralmente
eram livros à noite e jornais nas manhãs de
domingo.
Quando ele morreu, eu tinha dez anos, quase
onze. E se toda morte traz lá sua desculpa, a dele
foi das mais esfarrapadas: acidente de trânsito, em
frente à nossa casa e na calçada... Difícil de ler, não?!
Imagina de viver aos dez anos!
Mas, esfarrapada ou não, difícil ou não, para
tudo nessa vida a gente tem um parceiro que ajuda
bastante — o tempo.
E o tempo passou. Passou muito até que aquela
imagem de homem-leitor fizesse, na minha cabeça, o
sentido que faz hoje.
Naquela época, estávamos na década de setenta
(aprendi a ler, oficialmente, entre 75/ 76). Década da
lei 5.692 — “barra 72”. Lembro-me de que líamos um
livro por bimestre, a partir da quarta série. Mas, vivas
mesmo na lembrança, ficaram as malfadadas “provas
do livro”. Como eu odiava prova do livro! Irck!
Vinham encartes dentro das obras, e nós éramos
quase obrigados a decorar as respostas, objetivas,
que deveríamos dar neste ou naquele ponto. Sem tirar
nem por anotações.
Ler para mim era uma tortura, um saco.
A primeira prova do livro que fiz foi a partir
da leitura de O gigante de botas, de Ofélia e Narbal
Fontes, editora Ática, coleção Vaga-lume (quem
lembra? As obras, sempre oportunas, sujeitas ao uso
despreparado que só o tempo e a vontade de muitos
profissionais corrigiriam).
1980.
Acabei a leitura do livro, obrigada, num fim de
domingo (a prova seria na manhã seguinte). Meu pai
até que estimulava, mas, que nada, aquilo para mim
era tortura, na boa, como diriam os pré-adolescentes
de hoje.
Devo ter tirado nota para passar, porque não fiquei
com nenhuma má lembrança da prova.
Muitos anos depois reli o livro. Gostei muito.
Dele e do Cem noites tapuias lido também lá em 80.
E aí fiquei pensando: “Por que não gostei deles lá
atrás? Será que era só porque eu era criança? Mas
eles eram para minha faixa etária?! Por que tão distantes
então?”
Não. Absolutamente. Não foi a minha idade que
me separou da obra, foi o oferecimento. O livro não
chegou até mim como objeto encantado... A história
não chegou como história. Chegaram ambos como
instrumentos de avaliação. E nada mais difícil em
qualquer idade e sob qualquer pretexto do que ser
avaliado. Pesa, aflige, assusta.
Prova do livro.
O que prova sobre meu “aproveitamento” de uma
leitura senão minha vontade de partilhá-la com todas
as pessoas de que gosto?! Minha vontade irrefreável
de contar para todo mundo?! Escrever respostas
“pré-fabricadas” sobre este ou aquele personagem,
essa ou aquela parte, sobre (e isto é o pior) o que
quis dizer o autor me tornam, talvez, uma máquina
copiadora. Talvez nem isso.
E é aí que volto à imagem de meu pai.
Absorto. Estático, exceção feita à mão, que passava
as páginas, e aos olhos, sempre ávidos. A face interna
da leitura não podia nem posso ver. Mas aquela
imagem, deliciosamente compenetrada, definiu e redefiniu
meus encontros com as leituras, muitas vezes!
O que o fazia ler sem ninguém mandar, sem ninguém
pedir, ler para não fazer prova nenhuma?! Ler
e ser feliz?! Porque isso sempre ficou claro para mim,
ele era feliz lendo. Minha mãe diz até hoje que o
mundo poderia despencar que, se meu pai estivesse
lendo, não ouviria mesmo!
A leitura o nutria.
Quando catorze anos após sua partida, comecei a
trabalhar como mediadora de leitura, e sem perceber,
fui internalizando textos para contar, transformando-
-me pouco a pouco e sem saber em contadora de
histórias. Claro que fiz umas excursões sobre Júlias
e Sabrinas, José de Alencar e Exupéry antes, mas foi
quando vi o brilho que refletia no olhar dos meus ouvintes,
que me lembrando de meu pai, fui construindo
meus conceitos sobre a prática leitora. Não adianta
empurrar nada goela abaixo, que dirá livros! Vale dar
dica, vale oferecer, sem cobrança, claro, vale contar
ao pé do ouvido (e como vale!), mas tem que seduzir,
alimentar, semear. Isso! Semear é o verbo. Semear e
deixar que o dono da terra cuide do resto, na hora
que achar melhor. Vale ajudar, mas sem cobranças.
Ninguém obriga ninguém a ler. Que nos valha Daniel
Pennac! Semear e seduzir. Sempre. Sem medo.
Muita água rolou no rio de minha vida,
precisaria de muito tempo para que, um dia, conversando
com minhas irmãs mais velhas, me lembrasse
de um diálogo que se tornou marcante:
— Ah, pai, eu acho ler muito chato! — tinha entre
oito e dez anos.
Então ele respondeu:
- Minha filha, quando você perceber a importância
da leitura em sua vida, você nunca mais vai parar de
ler, nunca mais...
Além de tudo, meu pai, leitor inveterado, era visionário...
A lição foi aprendida.

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Originalmente publicado em CENAS COMUNS, este texto também consta da obra Literatura também é coisa de criança, escrito em parceria com Vera Lucia Santos da Silva e publicado pela Editora Ao Livro Técnico.

2 comentários:

  1. Nossa, oq falar sobre esse texto???
    Bom, q através de um simples e divertido ato (o da leitura), um homen tb simples, fez com q as filhas se tornassem adultas inteligentes e capaz de passar todo esse gosto pela leitura, pela vontade de aprender, em um ato de amor!
    Tenho muito orgulho do meu avô, e das tias que ele me deu, rs!!!
    Amo muito vocês!
    Tatiane.

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  2. Árvore Genealógica - Corrente sem começo e fim = > Somos fruto dela... Herdamos no Tempo (Atemporal), tantas histórias => Raízes profundas...

    A diferença é quando conseguimos perceber relativamente o Espírito dessa Questão.

    Claudio Pierre

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