domingo, 24 de novembro de 2013

LEITURA

AGORA

         Ela o sentia no cheiro dos livros novos. O tocava através das folhas, das poesias. Nunca nos romance, muito longos ao contrário de sua convivência com ele... No máximo o sentia nos contos, com sabor de clássicos. Nas crônicas do dia-a-dia, outros tantos de prosa, talvez. Via seus olhos no brilho das luzes sobre as capas e seu coração palpitava só de pensar na emoção dele com a leitura.
        
         Ele a ensinou a ler. A ler com a alma. Mas nunca saberia...
        
         Lendo tão assim, com a alma, ela tocava as páginas como quem entrelaça os dedos do ser amado. Cochichava consigo mesma sobre as entrelinhas e corava com as possibilidades que via diante de si. Seu mundo agora era outro. Como homeopatia, ingeria todo dia um texto. Num dia ria, noutro chorava. Mas nunca mais seria a mesma. Nunca mais! Agora via intensidade em tudo. Via mais beleza no mundo, nas coisas, nas pessoas. Se o vento roçava as folhas do coqueiro, ela construía com o olhar uma poesia, se chovia forte à noite, intuía um conto ou dois. E depois os partilhava com a mesma suave emoção com que os concebia.
         Conceber. Verbo visceral.
         Bem oportuno também, porque ela se sentia mesmo grávida. Grávida de vida, de palavras, de histórias. Sentia mesmo o corpo crescer aos empurrões da alma que irradiava mais forte.


ELE

         Semeador de palavras ele seguia sempre, abrindo olhos, despertando consciências, enternecendo corações. Seu verbo ia auxiliando no crescimento de tantos homens e mulheres sequiosos de saber. Seu caminho não tinha porto.
         Seu nome – Luan. E era mesmo parecido com a lua! Tinha fases, ausências, mas sempre refletindo luz e incentivando sonhos.


ELES
“O luar é a luz do sol que está sonhando!” Mario Quintana

         Foi assim.
         Ela estava distraída quando o viu chegar. Não sei se era dia ou noite, porque a pele branca dele fazia tudo parecer tão claro que ela não soube contar o tempo senão por Mnemosine. E aquele foi mesmo um tempo da memória afetiva. Só dela.
         Não teve relógio que ousasse contar as horas. Horas? Ora, para quê?!
            Ele a olhou como a tantos outros olhou. Como o oleiro diante da argila ou o lapidário diante da gema. Sorriu para iniciar seu trabalho e ela sentiu como se o luar entrasse pela janela. Riu sozinha quando escutou seu nome. Ninguém entendeu o porquê, mas é que naquela hora, só ela viu o sol que sonhava através do luar Luan. 


ELA

         Tímida, de fibra e ideais nobres, Marta era jovem madura desde menina, quando já ensinava a tantos as primeiras de letras. E o fazia com maestria. Nunca da mesma forma nem com menor prazer.
         Apesar disso, sentia que faltava algo a mais que mantivesse para sempre o brilho nos olhos daqueles a quem ensinava. Comparava seu trabalho ao céu sem a luz da lua: cheio de encanto e poesia, mas incompleto.
         Isso a incomodava...


O BAÚ             

         Marta nunca tinha pensado na leitura como canal para o que fazia. Sempre que alfabetizava ofertava livros para treino e como prêmio, mas nenhuma vez como ponto de partida. Até aquele dia em que encontrara Luan.

         Feitas as apresentações, ele abriu, no meio da sala, um baú. Tosco, rude e cheio de livros. Ela estancou. Seus olhos se limitaram a observar o caminho de cada um até ele. A forma cerimoniosa como folheavam.
         Minutos depois Luan pediu que sentassem, fechou o baú e abriu a boca.   Impregnou a sala de histórias. Contou e encantou por muito tempo. Todos viajaram ao som de sua voz, letra a letra, com intensidade. Quando então reabriu o baú, a história foi bem outra! E Marta percebeu onde estava a lua que precisava para completar seu trabalho. O marco era os livros, mas pra dar o tom era preciso o som das histórias contadas, remexidas com gestos e olhares, levadas ao forno das emoções em fogo brando, mas perene, e servido com paixão, paixão de ler!


POR ISSO         

         Por isso agora amava tanto. Lia e relia com tanto prazer. Sorria com corpo e alma, e sua boca já não se contentava em repassar saberes. Tinha acabado de romper a crisálida e queria voar alto, ou apenas voar simplesmente, pousando e fecundando cada flor, participando da multiplicação dos jardins. Jardins de palavras. Era com eles que sonhava quando a vimos na livraria, grávida de histórias.
         Nesse momento, sobre improvisado palco, rodeado de jovens e crianças de todas as idades, ela põe Mozart – concerto para flauta nº 2 – dá pulos em stacato, com olhos de quem belisca levemente, para chamar atenção.

         Já é anjo, e sopra histórias que faz viver por sua boca, olhares e gestos. O espaço se completa de luzes, sons, palpitações e a vontade de ouvir um pouco mais. Contando, reúne numa ciranda, autores e ouvintes, textos e desejo deles, e nesta roda – viva de histórias – a magia está completa.

         Marta contempla o espaço e suspira fundo, numa pausa que antecipa o fim.       Como é feliz assim, como é feliz.

         Ah, sim!
                       

VIDA E POESIA
“Não faço versos a ti. Faço versos de ti”. Mário Quintana

         Agora ela descansa corpo e alma, debruçada sobre a memória.
         Semente de seus ideais, seus pensamentos flutuam pelo quarto, seu mar, que reflete em águas calmas, a luz da lua.
         Relembra Luan.
         Quanto amor podia sentir agora prescindindo do corpo, da presença, do toque. E, no entanto, como tocava sua presença-ausente, seu corpo encantado, nas páginas da memória.
           
         A vida é plena de poesia e bem querer se o quisermos, sabe?! Se não prendermos apertados os momentos e pessoas, como eles se gravam em nós.

         Era assim que Luan estava em Marta: gravado para sempre, como água forte.
         Ela não vivia um poema de amor. Ela era amor. Era um cântaro cheio dele e o distribuía junto com as letras que ensinava e as histórias que contava.      Não escrevia contos. Os vivia. E era muito feliz assim...

LEITURA, abre o livro CONTOS E OUTROS TANTOS (que ainda não nasceu em papel)


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