AGORA
Ela
o sentia no cheiro dos livros novos. O tocava através das folhas, das poesias.
Nunca nos romance, muito longos ao contrário de sua convivência com ele... No
máximo o sentia nos contos, com sabor de clássicos. Nas crônicas do dia-a-dia,
outros tantos de prosa, talvez. Via seus olhos no brilho das luzes sobre as
capas e seu coração palpitava só de pensar na emoção dele com a leitura.
Ele a ensinou a ler. A ler com a alma. Mas nunca saberia...
Lendo tão assim, com a alma, ela tocava as páginas como quem
entrelaça os dedos do ser amado. Cochichava consigo mesma sobre as entrelinhas
e corava com as possibilidades que via diante de si. Seu mundo agora era outro.
Como homeopatia, ingeria todo dia um texto. Num dia ria, noutro chorava. Mas
nunca mais seria a mesma. Nunca mais! Agora via intensidade em tudo. Via mais
beleza no mundo, nas coisas, nas pessoas. Se o vento roçava as folhas do
coqueiro, ela construía com o olhar uma poesia, se chovia forte à noite, intuía
um conto ou dois. E depois os partilhava com a mesma suave emoção com que os
concebia.
Conceber. Verbo visceral.
Bem oportuno também, porque ela se sentia mesmo grávida.
Grávida de vida, de palavras, de histórias. Sentia mesmo o corpo crescer aos
empurrões da alma que irradiava mais forte.
ELE
Semeador de
palavras ele seguia sempre, abrindo olhos, despertando consciências,
enternecendo corações. Seu verbo ia auxiliando no crescimento de tantos homens
e mulheres sequiosos de saber. Seu caminho não tinha porto.
Seu nome – Luan. E era mesmo parecido com a lua! Tinha
fases, ausências, mas sempre refletindo luz e incentivando sonhos.
ELES
“O luar é a luz do sol que
está sonhando!” Mario Quintana
Foi assim.
Ela estava distraída quando o viu chegar. Não sei se era dia
ou noite, porque a pele branca dele fazia tudo parecer tão claro que ela não
soube contar o tempo senão por Mnemosine. E aquele foi mesmo um tempo da
memória afetiva. Só dela.
Não teve relógio que ousasse contar as horas. Horas? Ora,
para quê?!
Ele a olhou como a tantos outros olhou.
Como o oleiro diante da argila ou o lapidário diante da gema. Sorriu para
iniciar seu trabalho e ela sentiu como se o luar entrasse pela janela. Riu
sozinha quando escutou seu nome. Ninguém entendeu o porquê, mas é que naquela
hora, só ela viu o sol que sonhava através do luar Luan.
ELA
Tímida,
de fibra e ideais nobres, Marta era jovem madura desde menina, quando já ensinava
a tantos as primeiras de letras. E o fazia com maestria. Nunca da mesma forma
nem com menor prazer.
Apesar disso, sentia que faltava algo a mais que mantivesse
para sempre o brilho nos olhos daqueles a quem ensinava. Comparava seu trabalho
ao céu sem a luz da lua: cheio de encanto e poesia, mas incompleto.
Isso a incomodava...
O
BAÚ
Marta nunca tinha pensado na leitura
como canal para o que fazia. Sempre que alfabetizava ofertava livros para
treino e como prêmio, mas nenhuma vez como ponto de partida. Até aquele dia em
que encontrara Luan.
Feitas as apresentações, ele abriu, no meio da sala, um baú.
Tosco, rude e cheio de livros. Ela estancou. Seus olhos se limitaram a observar
o caminho de cada um até ele. A forma cerimoniosa como folheavam.
Minutos
depois Luan pediu que sentassem, fechou o baú e abriu a boca. Impregnou a sala de histórias. Contou e
encantou por muito tempo. Todos viajaram ao som de sua voz, letra a letra, com
intensidade. Quando então reabriu o baú, a história foi bem outra! E Marta
percebeu onde estava a lua que precisava para completar seu trabalho. O marco
era os livros, mas pra dar o tom era preciso o som das histórias contadas,
remexidas com gestos e olhares, levadas ao forno das emoções em fogo brando,
mas perene, e servido com paixão, paixão de ler!
POR
ISSO
Por isso agora amava tanto. Lia e relia com tanto prazer.
Sorria com corpo e alma, e sua boca já não se contentava em repassar saberes.
Tinha acabado de romper a crisálida e queria voar alto, ou apenas voar
simplesmente, pousando e fecundando cada flor, participando da multiplicação
dos jardins. Jardins de palavras. Era com eles que sonhava quando a vimos na
livraria, grávida de histórias.
Nesse momento, sobre improvisado palco, rodeado de jovens e
crianças de todas as idades, ela põe Mozart – concerto para flauta nº 2 – dá
pulos em stacato, com olhos de quem belisca levemente, para
chamar atenção.
Já é anjo, e sopra histórias que faz viver por sua boca,
olhares e gestos. O espaço se completa de luzes, sons, palpitações e a vontade
de ouvir um pouco mais. Contando, reúne numa ciranda, autores e ouvintes,
textos e desejo deles, e nesta roda – viva de histórias – a magia está
completa.
Marta contempla o espaço e suspira fundo, numa pausa que
antecipa o fim. Como é feliz assim,
como é feliz.
Ah, sim!
VIDA E POESIA
“Não faço versos a ti. Faço
versos de ti”. Mário Quintana
Agora
ela descansa corpo e alma, debruçada sobre a memória.
Semente de seus ideais, seus pensamentos flutuam pelo
quarto, seu mar, que reflete em águas calmas, a luz da lua.
Relembra Luan.
Quanto amor podia sentir agora prescindindo do corpo, da presença,
do toque. E, no entanto, como tocava sua presença-ausente, seu corpo encantado,
nas páginas da memória.
A vida é plena de poesia e bem querer se o quisermos, sabe?!
Se não prendermos apertados os momentos e pessoas, como eles se gravam em nós.
Era assim que Luan estava em Marta: gravado para sempre,
como água forte.
Ela não vivia um poema de amor. Ela era amor. Era um cântaro
cheio dele e o distribuía junto com as letras que ensinava e as histórias que
contava. Não escrevia contos. Os
vivia. E era muito feliz assim...
LEITURA, abre o livro CONTOS E OUTROS TANTOS (que ainda não nasceu em papel)
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