domingo, 29 de dezembro de 2013

ENTRE MÃE E FILHO

 
       Desde cedo brincou com papel. Até suas bonecas eram feitas dele. Cola e tesoura no lugar de retalhos e agulhas, ao modelar os trajes com que as vestia. Tanto o fez, que foi através dele que reconheceu e assegurou seu papel no mundo. Da Certidão aos sentimentos, mantinha quase toda sua vida registrada. Das texturas mais densas às mais sedosas lembranças.
         Brinca agora.
       Seu pulso faz girar a caneta num bailado de formas bem desenhadas que contam histórias. (Já contara outras tantas: de infâncias, desejos, pequena notas, extensas laudas, poemas, pedidos). Com alma de fiandeira desfia o grafite do caule e tece, ora com vigor, ora com vagar, seus pensares. Sua tarefa ganha forma até o ponto final, mas a revisão cede lugar à reticente brisa que passa roubando-a de si mesma.
         Lembra-se do quanto apreciava recordar seus passos, escrever suas preces, abrandar suas pressas, nomear suas presas, decorar-se com asas.
        Nesse devir recua no tempo e brinca entre árvores, ciranda descalça, namora luares, revê caminhos, rascunha lugares... Permite-se balançar na rede da memória, sem demora, sentindo cada minuto ventar em seu rosto, com gosto.
         Sob tênue véu se vê menina, rodopia moça, mas, encharcada de ternura, se reconhece mulher. Com o passar das horas seu corpo já vertia o conteúdo láteo com que alimentaria seu sonho.
         Retorna à realidade.
      Peito aberto aproxima-se do berço e acolhe entre os braços seu melhor texto. Ressona um acalanto pra aninhá-lo e escreve com o olhar códigos de amor sobre o rosto de seu filho.
      Não há papel que registre. Palavra que represente. Fotografia que capture. Tela que retrate com fidelidade o que se passa.
         É quadro único. Obra ímpar.                                       
          O texto sobre a mesa aguarda revisão, mas este texto, entre mãe e filho, nasce pronto.
         Nasce.
         E pronto.

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In Contos e Outros Tantos, este texto nasceu muito antes do meu sobrinho Marco Túlio, mas foi somente quando ele veio que tudo fez sentido. No original eu insistia em falar de menina, porque sou mãe de menina, afinal. Mas o texto nasceu para este novo Ferreira, antes dele mesmo. E apenas ganhou sentido para mim quando, um dia, o vi, nos braços de minha irmã caçula, que... Desde cedo brincou com papel.



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